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Essa noite, Euclides pronuncia o nome
de Julia, sibilando devagar o gosto na língua, e de sua janela a vê apagar a
luz às 11:30 pm. A lua redonda balançando no céu da cidade é alta e queima neblina
de amores venais. Euclides, em sua euclidiana visão de mundo, procura respostas
e seu corpo de palavras que pulsa na rua. Num aceso ensaio de frases, contudo
uma lucidez lhe subtrai novas falas noturnas com o silêncio que deleta sem paz
a mensagem escrita no cuidado de dez minutos. Seu olhar de mármore vaza uma
última vez lançado ao vento do carmo nas pracas, e fecha a cortina da sala para
o escuro contemporâneo empunhando um i-Phone no breu como um revolver: cinema
sem trilha de Ennio Morricone, sem Massive Attack também, que na vereda sem
lírios em que Euclides calcula esquecer Julia, ele se promete nunca mais
escutar. É com esse desejo verbal que despencam nuvens triviais e risíveis para
essa linda numa torrente de sabores no élain de dor e de prazer. Euclides desce
pela escada larga que o entrega à portaria e ao círculo dos bares boêmios,
docas e casas noturnas das imediações, lugares onde ele um dia sonhara ser
motociclista.
3
Esse motociclista vaza pela borda beira
mar na interseção dos destinos cruzados em castelos, abismos neoclássicos nos
antigos casarios seculares e a praia vasta para o leste. Sob a previsão dos meteorologistas
ele voa numa secante, absorve a solidão do Penedo quando a madrugada esconde vozes
confessadas, dropa a curva arrogante dos homens belicosos como uma onda, desde
a curva do Alvares Cabral num desvio dos Renaults e Peugeots sem nouvelle
vague. Nas noites quentes que o fim de ano arreganha na cidade esse
motociclista é o vento sem data nem nome, na chuva sem lugar ou piedade quando
o pau quebra no trânsito pela coletiva pilotagem cultural dos motoboys; quando
resta uma niezscheana voz na falta da letra que lembra o que não compromete em
nada uma escrita genial. Esse motociclista não sabe, contudo, que é um
euclidiano sonho, estruturado no mais que perfeito que se sonhara. Com asas
negras sobre a noite arma seu vôo de Hermes, e entre nuvens densas atravessa oníricos
salões de ensaio de escola de samba para falar com Julia: seu assunto é também
o corpo de palavras em sons que a desenham quando o olhar sobre ela sucumbe à
delicada orla de seu vestido azul, quando se olham com verdade numa alegria
inaceitável pelo mundo das amenidades. Motociclista esse que a decifra na Av.
Dante Micheline se o engarrafamento mesmo a ele é uma interdição real, que num
contorno de fantasia o convida a ficar. Dentro do capacete, sonha um dia poder
ser o Narrador, a quem julga capaz de escrever os destinos de um desejo, quando
o culpa por jamais ter permitido de Julia uma aproximação consumada, estendendo
para as recicências um encontro inexorável.
5
O Narrador ordena momentos, persegue a
invenção de uma saída plausível para o amor de Euclides por Julia, pondo
palavras na boca do pobre, como a machadiana sibilação na tímida janela do
prédio avizinhado. Nessa noite; o Narrador supõe o perfume de Julia, sem
conhece-la, toca-la. Até porque apenas dos personagens ela se aproxima, com
cautelosa intensidade, qual será ela mesma uma lua atravessada pelo tempo na
duração das fases de um rosto, amoroso pelo olhar. Embora despreze Euclides,
Narrador inveja o motociclista e seu antinome inscrito, seu deslizamento pelas
avenidas comuns, sua certeza de que Julia também deseja essa letra que falta
nos pixos da cidade. De sua mesa bruta, o Narrador escreve a cena em que no
sonho de Euclides, Julia e o motociclista se encontram. O olhar do Narrador
sobrevoa também uma possibilidade com restos de diálogos anteriores, e decide que
no encontro citaram uma série de textos em que poderiam estudar o sentido de
tais e tais fonemas num determinado contexto, comum a ambos. Durante duas horas
os dois se falaram com a leveza mística e abstrata, algumas vezes consentindo
com que os sons das palavras as fizessem escapar de si para a amplitude
violenta, o incêncio furioso no firmamento da tarde. Nesse encontro, sonhado
por Euclides e escrito pelo Narrador, a cidade por um momento pareceu encaixar
sua engrenagem. A tarde que passava ao largo dos desejos, utilizando discursos e
normas do bem viver banal e sem paixão agora manchava de uma forma doce, molhada
no café com açucar que em vasto desconhecimento qualquer dos dois personagens
jamais poderia prever, tanto quanto o próprio Narrador não saberia doravante
averiguar com precisão. Desde os primeiros instantes de um assunto que os
legitimasse o encontro além do habitual motivo da verificação de Jorge Luis Borges
em espanhol e sua comparação com outros em mesma língua, um sismo os denunciava.
O Narrador concluira: na sua própria concepção modernista de um mundo em
sobreposições, algo se escavacara. Embora não soubesse ao certo onde habitava
tal quebrantamento.
8
Aparentemente sem agonia o Narrador
segue seu destino de personagem clássico. Caminha nas manhãs, escuta Led
Zeppelin, faz supermercado. Matricula-se na malhação sob o comentário da moça
do administrativo; Hum, 4 meses tá no ponto. E enquanto pedala, procura pensar
onde foi quebrantado o que se partiu quando o motociclista e Julia se
encontraram, presos em tanta alegria que não os faz suspeitos de maiores
discernimentos. Ao sair da academia, caminha para o Land Rover Defender, e ao
entrar no carro hasteia também seu encontro, sua cosmovisão, ao custo de uma
epifania: foi nele; dentro dele algo estilhaçara. Em seu coração uma devastação
ancorara igual navio após lendária viagem em apud, onde o chão começa, no cais,
no corte que leva ao amor. Ao mais que não se possa ter por algo que se queira,
e do qual se fala esquecer da boca pra fora, e se escreve poemas, e se recomeça.
Ele viu, se apercebeu da simplicidade da
situação: durante aqueles anos que se passaram, escrevendo sobre a ventura do
amor em seu romance, ele se apaixonara por Julia de uma forma maravilhosa e perturbadora.
Quando ela escreve poemas ao luar, ou é tarde sensível furiosa de amor, é o
retorno feminino às suas palavras avaras. Antes de ligar o carro, esse homem empunhou o
celular, sem qualquer narrativa, como procurasse nos contatos. Simples: Julia
era sua personagem lua. Uma mulher que é a carne nua da palavra, a parte viva
de seu livro, sua presença real.
13
Enquanto escrevo, o Narrador dirige pelas
ruas de Vitória. Essa noite. Supondo agora ser meu personagem, pergunta o
motivo de minha crueldade. Escrevo para ele uma vida ascente, o contorno burguês
para um letramento bruto e delicado. Assim encaro o céu de fogo, que vazará num
ponto lá dentro do mar até vir deitar uma chuva de lágrimas na praia, onde
corro numa bicicleta ouvindo música. E as palavras sorriem línguas comparadas. É
quando recebo uma mensagem no célular, que Julia ilumina de repente: e você, tem o Ficciones do Borges, em
espanhol? Bjo.