14 dezembro 2013

Elo


2
Essa noite, Euclides pronuncia o nome de Julia, sibilando devagar o gosto na língua, e de sua janela a vê apagar a luz às 11:30 pm. A lua redonda balançando no céu da cidade é alta e queima neblina de amores venais. Euclides, em sua euclidiana visão de mundo, procura respostas e seu corpo de palavras que pulsa na rua. Num aceso ensaio de frases, contudo uma lucidez lhe subtrai novas falas noturnas com o silêncio que deleta sem paz a mensagem escrita no cuidado de dez minutos. Seu olhar de mármore vaza uma última vez lançado ao vento do carmo nas pracas, e fecha a cortina da sala para o escuro contemporâneo empunhando um i-Phone no breu como um revolver: cinema sem trilha de Ennio Morricone, sem Massive Attack também, que na vereda sem lírios em que Euclides calcula esquecer Julia, ele se promete nunca mais escutar. É com esse desejo verbal que despencam nuvens triviais e risíveis para essa linda numa torrente de sabores no élain de dor e de prazer. Euclides desce pela escada larga que o entrega à portaria e ao círculo dos bares boêmios, docas e casas noturnas das imediações, lugares onde ele um dia sonhara ser motociclista.

3
Esse motociclista vaza pela borda beira mar na interseção dos destinos cruzados em castelos, abismos neoclássicos nos antigos casarios seculares e a praia vasta para o leste. Sob a previsão dos meteorologistas ele voa numa secante, absorve a solidão do Penedo quando a madrugada esconde vozes confessadas, dropa a curva arrogante dos homens belicosos como uma onda, desde a curva do Alvares Cabral num desvio dos Renaults e Peugeots sem nouvelle vague. Nas noites quentes que o fim de ano arreganha na cidade esse motociclista é o vento sem data nem nome, na chuva sem lugar ou piedade quando o pau quebra no trânsito pela coletiva pilotagem cultural dos motoboys; quando resta uma niezscheana voz na falta da letra que lembra o que não compromete em nada uma escrita genial. Esse motociclista não sabe, contudo, que é um euclidiano sonho, estruturado no mais que perfeito que se sonhara. Com asas negras sobre a noite arma seu vôo de Hermes, e entre nuvens densas atravessa oníricos salões de ensaio de escola de samba para falar com Julia: seu assunto é também o corpo de palavras em sons que a desenham quando o olhar sobre ela sucumbe à delicada orla de seu vestido azul, quando se olham com verdade numa alegria inaceitável pelo mundo das amenidades. Motociclista esse que a decifra na Av. Dante Micheline se o engarrafamento mesmo a ele é uma interdição real, que num contorno de fantasia o convida a ficar. Dentro do capacete, sonha um dia poder ser o Narrador, a quem julga capaz de escrever os destinos de um desejo, quando o culpa por jamais ter permitido de Julia uma aproximação consumada, estendendo para as recicências um encontro inexorável.

5
O Narrador ordena momentos, persegue a invenção de uma saída plausível para o amor de Euclides por Julia, pondo palavras na boca do pobre, como a machadiana sibilação na tímida janela do prédio avizinhado. Nessa noite; o Narrador supõe o perfume de Julia, sem conhece-la, toca-la. Até porque apenas dos personagens ela se aproxima, com cautelosa intensidade, qual será ela mesma uma lua atravessada pelo tempo na duração das fases de um rosto, amoroso pelo olhar. Embora despreze Euclides, Narrador inveja o motociclista e seu antinome inscrito, seu deslizamento pelas avenidas comuns, sua certeza de que Julia também deseja essa letra que falta nos pixos da cidade. De sua mesa bruta, o Narrador escreve a cena em que no sonho de Euclides, Julia e o motociclista se encontram. O olhar do Narrador sobrevoa também uma possibilidade com restos de diálogos anteriores, e decide que no encontro citaram uma série de textos em que poderiam estudar o sentido de tais e tais fonemas num determinado contexto, comum a ambos. Durante duas horas os dois se falaram com a leveza mística e abstrata, algumas vezes consentindo com que os sons das palavras as fizessem escapar de si para a amplitude violenta, o incêncio furioso no firmamento da tarde. Nesse encontro, sonhado por Euclides e escrito pelo Narrador, a cidade por um momento pareceu encaixar sua engrenagem. A tarde que passava ao largo dos desejos, utilizando discursos e normas do bem viver banal e sem paixão agora manchava de uma forma doce, molhada no café com açucar que em vasto desconhecimento qualquer dos dois personagens jamais poderia prever, tanto quanto o próprio Narrador não saberia doravante averiguar com precisão. Desde os primeiros instantes de um assunto que os legitimasse o encontro além do habitual motivo da verificação de Jorge Luis Borges em espanhol e sua comparação com outros em mesma língua, um sismo os denunciava. O Narrador concluira: na sua própria concepção modernista de um mundo em sobreposições, algo se escavacara. Embora não soubesse ao certo onde habitava tal quebrantamento.

8
Aparentemente sem agonia o Narrador segue seu destino de personagem clássico. Caminha nas manhãs, escuta Led Zeppelin, faz supermercado. Matricula-se na malhação sob o comentário da moça do administrativo; Hum, 4 meses tá no ponto. E enquanto pedala, procura pensar onde foi quebrantado o que se partiu quando o motociclista e Julia se encontraram, presos em tanta alegria que não os faz suspeitos de maiores discernimentos. Ao sair da academia, caminha para o Land Rover Defender, e ao entrar no carro hasteia também seu encontro, sua cosmovisão, ao custo de uma epifania: foi nele; dentro dele algo estilhaçara. Em seu coração uma devastação ancorara igual navio após lendária viagem em apud, onde o chão começa, no cais, no corte que leva ao amor. Ao mais que não se possa ter por algo que se queira, e do qual se fala esquecer da boca pra fora, e se escreve poemas, e se recomeça. Ele viu, se apercebeu da simplicidade da situação: durante aqueles anos que se passaram, escrevendo sobre a ventura do amor em seu romance, ele se apaixonara por Julia de uma forma maravilhosa e perturbadora. Quando ela escreve poemas ao luar, ou é tarde sensível furiosa de amor, é o retorno feminino às suas palavras avaras.  Antes de ligar o carro, esse homem empunhou o celular, sem qualquer narrativa, como procurasse nos contatos. Simples: Julia era sua personagem lua. Uma mulher que é a carne nua da palavra, a parte viva de seu livro, sua presença real.

13
Enquanto escrevo, o Narrador dirige pelas ruas de Vitória. Essa noite. Supondo agora ser meu personagem, pergunta o motivo de minha crueldade. Escrevo para ele uma vida ascente, o contorno burguês para um letramento bruto e delicado. Assim encaro o céu de fogo, que vazará num ponto lá dentro do mar até vir deitar uma chuva de lágrimas na praia, onde corro numa bicicleta ouvindo música. E as palavras sorriem línguas comparadas. É quando recebo uma mensagem no célular, que Julia ilumina de repente: e você, tem o Ficciones do Borges, em espanhol? Bjo.

,.