24 abril 2013

A canção dos amantes



1
Sou o homem velho que se arrasta na praia entrevado de memórias. Sei que minha vida acende um sol dentro do peito enquanto me canso. Sou a terceira pessoa que não cabe no real. A força desses dias veio da fantasia, e agora vence meu exercício matinal, atravesso até o píer a avenida ereta e meus fones de ouvido cantam segredos com os quais a musa me pede para chorar. Meu corpo magro cheio de ossos é o torpor que pode voar se a secreta orquestração aos poucos narra, com a canção dos amantes que já intuem o próximo tato, a passagem à todas as cenas,.. aos sussurros da água, à dor do tempo, à encochada da preamar na carne da praia. Ao evento único das palavras nas cartas ao mar...

2
Sou um homem com horror à medicina. E diante do poder das respostas, dos diagnósticos, das probabilidades pelas quais invento uma engenharia para as tardes parciais, coloridas com as derivadas banais que abordam e modificam a vida, desviam funções escalares para colorários vetoriais perfilando..., | sem medo, feliz...

3
Meu mundo é uma canção, um sonho em noite sem lua. Uma paixão que começa no poente. Esse poente everywhen que Camburi aos poucos vestiu para me despir inultilmente. As palavras que rasgam por dentro agora dão corpo ao movente desejo que as trouxe de dentro de mim; ressurjo ponto e vírgula na praia igual andarilho sem identidade, conquanto tão próprio meu nome evoe no fim do mar sendo literatura: a areia. meu eu lírico andante mais rápido que eu é um outro, mas sei que minha angústia moderna é careta, mais Baudelaire que Rimbaud. A pegada. Sei que estou velho. Sei que é o tempo que nos separa. Sei que esse tempo nos une. Sei que minha velhice nos atrai. Foi assim que em meu caderno escrevi teu carinho e tuas palavras onde eu estivesse perdido, tanto as roubei para mim. O narrador, acostumado à distâncias homéricas não pôde me alijar o desejo de lhe aceitar o alento com que me davas o ouvido dos leitores, e hoje não tem qualquer poder sobre nosso romance. Eu, mesmo personagem sou em mim esse homem que me narrava, e também a ti, até que um dia de sua escrita simplesmente partimos. Sei que és e eras e talvez sempre sejas velado semblante.. e tanto quanto eu, ateie fogo num corpo de letras na gananciosa esperança de que esse supernarrador nos esqueça por algumas horas, quanto daremos corpo às nossas cartas, por ele mesmo embaralhadas com gosto. Com força. É isso mesmo, esse tempo em que faremos o amor sem vírgula. Indefesos do ponto final.

4
E o mundo não seja o desencontro das palavras.

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