22 março 2009

Epicentro

A dor é enfeite para o gozo feliz. Mas não se espera do gozo propriamente felicidade e a noite está indo embora. Ara no céu a ceia crua.

António é literatura. Uma página pode cerzir sua voz. Mas a voz do outro é difícil de apreender, verificar.

Já procurei protagonistas, desvaneceram. António, herói do livro. Reconheço gostos e gestos que fazem de um ser qualquer uma pessoa iluminada. Resiste nelas, por um hiato velado, uma eternidade. Aos poucos, no entanto, os heróis sofrem da veleidade moral que impede a estória de continuar.

Sinto a noite por dentro, solidão. Os bares, restaurantes, oferecem combustível e degustação, o poder de um certo vício da gula ao errar criaturas elegantes. Sei que frases como esta não me levarão a lugares melhores, tento novos caminhos para encontrar a personagem central, achar o centro. O epicentro da vertigem chamada livro. A construção da estória agoniza provável, errática. Descreio das possibilidades encerradas na vida de António, sua existência é assunto que não está em meu alcance. Volto para casa, escuto um pregador, subtexto entronizado, quando pela renovação das nossas mentes transformamos o mundo:

Virá uma metalíngua capaz de dicernir joio e trigo: lançada às mãos dos leitores, palavra por palavra de um pecador, e os campos dourados de girassóis e os fonemas que serão levados pelas palavras serão cores diáfanas, belas, únicas,...

Entro em casa. É uma cama estreita que espera a noite de novembro. Essa pregnância de escuro espera e cala minha história, guarda suas folhas brancas na gaveta, absorve minha chegada enquanto a metrópole explode de torpor sem mim. Excêntrico demais para achar o fio condutor do caminho de uma escritura, resto também eu sem ela. Secretamente, observo minha impossibilidade de contá-la, apago o nome do personagem, vou até a janela, acendo o penúltimo cigarro.

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