Ele dorme com lábios de pedra e a expressão de um homem que foi ao desmonte do mundo. Cabelo barba sem corte. Travesseiro de pluma voz rouca da memória as costas magras asas de um sonho largo nos ombros. O suor do corpo exausto da claustrofobia do dia anterior, da escrita do real.
De manhã o frentista do posto avisara, pneu furado é um parafuso tipo bitola 8mm, e a vista-velha no ray-ban negro que aparecera em seu rallye desde o posto 5 cortando a orla fez espremer os olhos. Decidido, trocou o pneu com a chuva nas costas, essa brisa que deixou nele palavras afônicas. E mais tarde no happye-hour, com os amigos que restam, estava mudo. Reescrevia na cabeça uma dedicatória e o presente de Julia a levaria como se fosse uma carta.
No outro dia sorveu a manhã com chá de gengibre. Ele já sabia que a voz iria acabar de vez no meio de alguma aula na qual desempenaria o aço de uma análise machadiana para uma classe absorta no celular ou na investigação sobre seu brinco indolente prata sob o cabelo desgrenhado calvo shampoo anticaspa e citação em francês da aluna sobre a politonalidade, changez tout não é professor? Sim, o contrabaixo noutro tom. -- No carro, depois, à toda na ponte, o vão central com aquele som do Otto bateu numa saudade de Julia, saudade de todo dia. Só que pior.
Changez tout pour toi te lever no mundo que apaga sobre os livros abajur cabeceira sem camisa os olhos lentos óculos de perto e a janela fechada o vencimento do cartão entre a estante virtual dois Luiz Ruffato um Joca Reiners Terron um Michel Laub um Rubem Mauro Machado e quatro João Gilberto Noll. Apaga-se o dia, o papo reto prumo venal dos homens no bar inofensivo; seu carro e a lenda do Dodge Charger de seu pai, ainda carburado; sua alma de homem seu corpo de palavras pensadas, e sua voz impublicável distraída pra morte saindo do carro para a calçada, até ultrapassar chegar vir ao nome, que importa mais a chuva?, tinha uma vaga em frente e dessa vez não pensou duas vezes.
Ele sonha que entra pelo prédio de Julia e sobe até a cobertura, onde a avista na beira da piscina. Rodeada por amigos para os quais ela orna um descontraído Aperol, gesto e sorriso alças finas de mulher. A mania de morder um pouco o lábio inferior que ele carrega para o sono também molha um pouco a pedra que o faz escultura perdida anônima planta noturna homem que pensa how to disappear completely nessa madrugada sem paz no antigo neandertal em silêncio até acordar com as costas suadas.
Vim pela angústia de saber que tinha sonhado, depois do alinhamento eletrônico na oficina a avenida não acabava mais até que estacionei o carro tinha vaga bem em frente e chovia leve devastadoramente o elevador demorava o big bang e subi pelas escadas mesmo como se fosse atleta lembrava na hora daquela vez que estávamos de carro já quase noite e as nuvens um vestido roxo até que choveu forte sobre a cidade quando abri depressa a porta vermelha tinha um pessoal entrando no elevador que me olhou de relance e eu acho que demorei um pouco ali e não sabia muito o que estava fazendo não pensei num texto não pensei bem no Aperol que era amargo ou doce isso foi ontem