Na descida da Gama Rosa você estava na calçada daquele
bar e conversava numa mesa com o Antônio das Mortes Mirim, e a Moça tatuada nas
costas. Glauber erigia do antro de luz rosada e gesticulava, Heineken na mão,
voltava para a mesa de vocês, onde também estava aquele rapaz cineasta. A
Cidade Alta acesa na última noite de inverno até que passei pela Professor
Baltazar, onde um carro branco com um adesivo de sol acendia a luz de freio
encarnada. Na aragem malévola da queda, ergui os olhos para os prédios de Maria
do Carmo Schwab entre a mansidão dos alvéolos de Sylvia Plath, um Salmo ou as
capas de ar que o pássaro de asas negras desvela em noite profunda, escura como
as janelas de jacarandá da casa do Barro Vermelho que me vem sobre o capacete
negro quando giro e giro e giro num acidental espaço encantado, Boi-Tatá de
esperanças gastas de homem rude, baio, vasto promontório, manco, beijo na boca
ou viola de arame, e as bengalas prateadas dos amortecedores da moto se
irrompiam sem mais tempo numa doce escoliose e desferiam-me facas quando os
retentores de óleo em vazamento ou poema me entravam pelo abdome. Assim, no
campo aberto do Parreiral decadente das eras me voei tempo verbal de angustioso
chão ou simples pássaro flutuara negro e leve sobre a noite, já sobre uma
Camburi devastada pela poluição das próximas gerações até que acordei sem volta,
e cá estava. Agora, no escritório, escrevo-reescrevo o grande formulário de
impropérios acadêmicos, mas o contratexto vem no cenho tal sexteto de cordas,
tuas palavras na ponta avara da tua língua: é o escuro desse palavreado que
musico sem querer, no quanto te sorvo com a língua a cintura, as costas, e tua
voz rouca; e se na escuta dessa orquestra imaginada em meu texto estanco e
impregno de café qual viciado com caneca de ágata, depois novamente exato na
leitura bíblica aceito os óculos com mãos que atravessaram o deserto e neles
pensam tocar a réplica de um jarro d’água, que Heidegger esvaziou. Corpo
cansado que nunca mais. Venho de muito longe na vida, tempo de outras
cantorias, outros afazeres me encontraram no corpo sem baile e se de súbito me
acordam para o real aquém do onírico sou o démodé das gentes, noutro tempo em
que o centro histórico da cidade nem era a história que nos desarma e deflui a
essência das línguas dos tempos e tanto a cidade quanto o interior que nos
habita em segredo inventam o mundo e o cheiro da terra, e o piano velho, a voz
arranhada do João Barro, a cachoeira deslizando eira nem beira num sábado, a
avenida que noutra metrópole é fluxo de nascente interpretação da argila, a asa
do verbo que nos vem ainda misericórdia ao mesmo que nos arranca do outro a paz
do silêncio: meus passos na ponte sobre o escuro estão à caminho da linguagem em
cima do vidro. Ao largo disso, o abominável presente me faz o abismo; aos
poucos amanhece uma lâmina e absorvo o dia com um corte quando evoco os
melismas sonoros de um Elomar lançado ao bucho do céu que se abre terceiro e
margem como o rio que é meu pai na escrita de Guimarães. No seco dos
dicionários não encontro palavra para mim. Sou o homem do interior, o
motociclista urbano, a casa com varanda e rede, a voz que corta quanto mais é baixa
toada, oração, sacanagem. A cidade não se deu por minha morte, ontem, hoje, no
Eclesiastes depois de amanhã. Estou livre
11 abril 2016
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