11 abril 2016

Canção em voz baixa

Na descida da Gama Rosa você estava na calçada daquele bar e conversava numa mesa com o Antônio das Mortes Mirim, e a Moça tatuada nas costas. Glauber erigia do antro de luz rosada e gesticulava, Heineken na mão, voltava para a mesa de vocês, onde também estava aquele rapaz cineasta. A Cidade Alta acesa na última noite de inverno até que passei pela Professor Baltazar, onde um carro branco com um adesivo de sol acendia a luz de freio encarnada. Na aragem malévola da queda, ergui os olhos para os prédios de Maria do Carmo Schwab entre a mansidão dos alvéolos de Sylvia Plath, um Salmo ou as capas de ar que o pássaro de asas negras desvela em noite profunda, escura como as janelas de jacarandá da casa do Barro Vermelho que me vem sobre o capacete negro quando giro e giro e giro num acidental espaço encantado, Boi-Tatá de esperanças gastas de homem rude, baio, vasto promontório, manco, beijo na boca ou viola de arame, e as bengalas prateadas dos amortecedores da moto se irrompiam sem mais tempo numa doce escoliose e desferiam-me facas quando os retentores de óleo em vazamento ou poema me entravam pelo abdome. Assim, no campo aberto do Parreiral decadente das eras me voei tempo verbal de angustioso chão ou simples pássaro flutuara negro e leve sobre a noite, já sobre uma Camburi devastada pela poluição das próximas gerações até que acordei sem volta, e cá estava. Agora, no escritório, escrevo-reescrevo o grande formulário de impropérios acadêmicos, mas o contratexto vem no cenho tal sexteto de cordas, tuas palavras na ponta avara da tua língua: é o escuro desse palavreado que musico sem querer, no quanto te sorvo com a língua a cintura, as costas, e tua voz rouca; e se na escuta dessa orquestra imaginada em meu texto estanco e impregno de café qual viciado com caneca de ágata, depois novamente exato na leitura bíblica aceito os óculos com mãos que atravessaram o deserto e neles pensam tocar a réplica de um jarro d’água, que Heidegger esvaziou. Corpo cansado que nunca mais. Venho de muito longe na vida, tempo de outras cantorias, outros afazeres me encontraram no corpo sem baile e se de súbito me acordam para o real aquém do onírico sou o démodé das gentes, noutro tempo em que o centro histórico da cidade nem era a história que nos desarma e deflui a essência das línguas dos tempos e tanto a cidade quanto o interior que nos habita em segredo inventam o mundo e o cheiro da terra, e o piano velho, a voz arranhada do João Barro, a cachoeira deslizando eira nem beira num sábado, a avenida que noutra metrópole é fluxo de nascente interpretação da argila, a asa do verbo que nos vem ainda misericórdia ao mesmo que nos arranca do outro a paz do silêncio: meus passos na ponte sobre o escuro estão à caminho da linguagem em cima do vidro. Ao largo disso, o abominável presente me faz o abismo; aos poucos amanhece uma lâmina e absorvo o dia com um corte quando evoco os melismas sonoros de um Elomar lançado ao bucho do céu que se abre terceiro e margem como o rio que é meu pai na escrita de Guimarães. No seco dos dicionários não encontro palavra para mim. Sou o homem do interior, o motociclista urbano, a casa com varanda e rede, a voz que corta quanto mais é baixa toada, oração, sacanagem. A cidade não se deu por minha morte, ontem, hoje, no Eclesiastes depois de amanhã. Estou livre    


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