06 outubro 2011

Hiato

A música lá de cima campeava. Por vezes eu olhava a rua além da sacada e o pássaro de asas negras não jazia mais. O American Horse do The Cult era inaudível mixada lá no terraço pelo maestro DJ no turbilhão sinestésico azul profundo de onde vinha a obra prima do Massive Attack trilha de abertura da série Dr. House. É do álbum Mezzanine, uma última coisa que eu falei. Sem querer, até lutando contra, degustei teu discurso desde o início, quando você começou mesmo a falar do contemporâneo.

Aquela margarita tinha acabado mas o copo estava em tua mão direita. Você falava, vestido verde, noite abafada. A voz de Elizabeth Fraser vinha do terraço igual coro de sereias que usam Annick Goutal. No amplo e modernista andar de baixo você falava com pausas, semibreves, luas, o dedo na borda com sal. Do hiato eu continuava, com poucas palavras, disfarçando a obsessiva contagem dos desenhos na adamascada lateral de teu vestido; poucas palavras na ponta da língua num corpo de outro baile; essas palavras editadas de um imenso texto que em minha cabeça lhe desacatava num diálogo no qual meu ouvido cego também não lhe sabia; palavras finitas, essas difíceis, que teu vestido carregará para o outro lado da cidade amanhã. Da minha palavra você me sorria comentário, olhava o sal na borda onde teu dedo passeava, encarava rapidamente e tornava ao copo de margarita. Trazendo o dedo à boca sorvia o sal olhando o declive do artefato onde caía no fundo um novelo de grãos molhados de álcool, e assim ouvia meu discurso do método e meio, ao mesmo que experimentava o gosto e fazia humhum... lá em cima a guitarra já molhava a luz da pista de dança com a Dissolved Girl do Massive Attack. O problema dos sonhos é que eles nos conhecem. Procurei os figurantes, ultima chamada. O Trip Hop enlevava a atmosfera num Jazz perdido, modificado. Vi tua sagarana quando você me perguntou o por quê. E eu não sabia. Tua noção clara de que eu não tinha resposta parecia não lhe impedir de me questionar com o mesmo carinho. Complicado, simples. Nesse momento fui em direção à escada que novamente nos revelaria o andar de cima para onde a festa acontece num presente de sempre & sempre, mas olhei para trás.

Cheguei perto, você era uma terceira margem de um rio e era muito bonito te ouvir dizer isso, era em primeira pessoa mesmo. Foi nessa hora que peguei o copo da tua mão e coloquei no parapeito da sacada, enlacei a mão esquerda em tua cintura feliz. Teu silêncio respirou a música do lugar. Duas ou três frases letra minúscula sem ponto final, frases que agora não sei quais, estavam perto da saga rosa que dá gosto, eu sei. Bem perto, mais perto de mim você sorriu e disse: eu sempre soube.

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