22 fevereiro 2008

Cine Lapa

...Joana passou por mim, mexeu no cabelo, disse que amanhã de tarde poderíamos andar no calçadão. Fiz que sim. Algo em suas palavras remetia ao mundo real que eu havia deixado; Meu apartamento, do outro lado da cidade, no escuro impenetrável, como se fosse o escuro de onde Joana apareceu, vestida para matar. Sua saia oferecia a meia calça preta, olor das profissionais. Por que você faz isto, um dia eu perguntei, estávamos na janela do meu quarto cinco da tarde e São Domingos ainda cantarolava o hino, devia ser terça-feira. É a vocação de toda mulher, disse.

Entrei e encarei a moça. Sua alienação ouvia o hino de São Domingos, eram umas oito da noite. O santo assanhando a plebéia. Ela recepcionista há meses, sempre com revistas de novela, pelas quais seguia capítulos antes de acontecerem; Ouvia o papo deputado do zelador. Uns caras seguindo até a porta: a canalhada; olhei para trás, num pavor, de ainda estarem ali, e estavam. O santo disse meia dúzia de rasgos, até coçarem sabendo que eu era do local. Olhei para ele, o rosto de agradecimento que tem os moradores da classe média quando vão ao circo pela primeira vez e encaram um elefante. Pisei no primeiro dos três degraus que elevam à escuridão do corredor de onde sairá Joana, vestida de puta. A moça deixará claro que é bem nascida. Deixará clara a minha pergunta, que farei um mês depois: por que você faz isso?

Entrou um homem gordinho chamado Domingos. A moça das revistas o informou que eu era inquilino do número 4. São Domingos limpava o corredor nas terças e quintas-feiras, cantarolava o hino nacional e recolhia o lixo. O apelido santo veio depois de sua intervenção na rinha em que Joana levaria na cara. Domingos chegava umas quatro da tarde na pensão. As vezes ficava mais cercando a moça. Era 1993, minha geração limpa; A eleição do Collor, alguns anos antes, havia lavado de vez tudo aquilo que não estudáramos na escola.

,.