Fui comprar cigarros na esquina e nunca mais voltei. Entrei na banca de revistas, peguei o jornal que estava ao lado de uma mulher de meia idade folheando uma revista, na capa lia-se em letras garrafais a palavra orgasmo. Parecia nunca ter havido qualquer ponte entre as duas. Olhei para o bar, já aberto. Pedi uma média, um pão na chapa, acendi um dos cigarros. Folheei o jornal, senti o cheiro do café antes de misturar no leite e depois morri. Tive um ataque fulminante, o homem do balcão tentou acudir quando gritei Gisele... Ela não ouviu. Não poderia, claro, atender ao meu chamado. Gisele, nesta hora, está correndo no calçadão. Depois vai pra esteira e finalmente pra massagem.
Gisele corre em direção à academia, malha e camisa mostrando o umbigo, passou pela estátua do poeta em direção à Rainha Elisabeth. Enquanto estou morto, as coxas dela tremem na paisagem, como tremiam levemente os glúteos das garotas da faculdade; belas intelectuais. Vejo a pele morena de Gisele comprimir e relaxar a preferência nacional, de bruços sobre uma confusa Copacabana. Estou deitado no chão, o pessoal abre espaço numa roda pra chamar a ambulância, vejo as costas nuas de Gisele virem da noite passada. A academia é um local bonito, com uma arca em madeira clara onde tem chá no hall. Gisele insiste que eu tome chá e entre na turma dos aspirantes à esteira; é sempre uma fila. Bichos perto do cataclismo. Andei por ela uma vez; corri para não cair como um vira lata antes do sinal de trânsito abrir.
O hall fica separado do salão com as máquinas por um vidro. Lá, ninguém bebe café, o café foi abolido de todos os locais saudáveis. Quando é de noite uma televisão mostra a propaganda nova em que as amigas de Gisele aparecem, desfilando cevadas, bebendo cerveja. O vidro que separa o hall do salão as vezes molha, uma delas encosta a perna suada. Vidro, temperado enquanto olho seu talento aliciando alcoólatras. Tento bebericar o chá sem gosto, Gisele me chama do outro lado, balançando os braços, ela e suas amigas que fizeram a propaganda.
Há também os cigarros. Gisele já fez uma propaganda de cigarros, me estudou fumando como se estivesse numa companhia de teatro. Ensinei Gisele a tragar, fiz ela chupar como se fosse canudinho, tem de ser devagar. Molhava na boca, Gisele não resiste à nicotina, ao teor dos fumantes. O diretor do comercial achou melhor ela apenas aparecer numa praia. Assisti na sala baforando meu Hollywood. Aquém dos cigarros, do chope, está a própria Gisele; minha escultura, meu exercício.
O hall com o chá são melhores que a sala das máquinas. Num aquário a era efêmera das moças e rapazes é colorida e uniforme, popstars de uma religião. Converso com a menina do balcão, enganando a série de exercícios, espectador oprimido. Juliani faz a arrumação do hall e recebe as mochilas. Seu corpo de ébano leva um homem de volta ao vigor dos trinta, pele fresca. Sempre gostei de casar com mulheres mais novas, as duas primeiras tinham menos de vinte cinco e Gisele, finalmente é quase tão novinha quanto Juliani. A menina me mostra a cicatriz na perna esquerda apoiada no balcão, mostra a coxa, diz que foi há três anos. Eu sei que dói, falei. Diz que sai as três da tarde, está aprendendo inglês. O desejo não ajuda os costumes a continuarem bons. Para construir o mundo os homens se impregnam de mentiras. A idade vence a solidão com perguntas: quem envelhecerá conosco num quarto sem muitas palavras? Quem suportará a solidão, não do silêncio, mas do corpo? Quem suportaria a falta do meu desejo? Juliani me convida para o baile funk todas as sextas. Tenho meia dúzia de amigos de infância que paga mais de cem das verdes por isso. A infância nunca termina. Mas eu tenho Gisele. Os convites sempre vieram até mim, tudo foi fácil. Talvez seja a calvície; ler Proust; ter o pau bonito; a escolha do direito internacional público. Tudo isso fez Gisele gozar esta noite. Alada como as amigas na televisão ou nos cartazes que amamentam o verão de Copacabana.
Apagam-se lentamente a mulher da banca e a palavra orgasmo. A sirene distante conversa comigo, são palavras de meu pai, estamos sorrindo. Gisele receberá em alguns segundos um telefonema; Alô... Juliani vai dizer. As amigas chamaram a gente pra um fim de semana em Búzios; sinto uma ferradura no peito. Quero vê-las como na propaganda de cerveja, como Gisele está na propaganda de cigarros: suadas, bonitas, jovens.
25 janeiro 2005
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