25 outubro 2004

Arcoverde

(re)pare como são belos esses rostos. São monstros. Eles aparecem em todos os lugares, estão sorrindo para nós. A graça tediosa deles tem uma aparência perfeita. Nas revistas, jornais, canais da TV por assinatura. Uma grande rede é tudo. É a classe média na fita achando que faz o bem mantendo os pobres lá longe, comendo a filha da empregada pelo quarto de trás. A poluição que desce sobre nós e esparrama ansiedade e segredo, uma saudade do happy hour que ainda virárma-gedom. Columbine total. As formigas andam pelo chão num trabalho cego. Cláudio Lúcio avança para a direita, cansado do transito impossível, irrecuperável como a juventude. Dá seta, pede, xinga, coça. O caminhão amarelo sorri de pena. A coisa urbana não é mais toda tão certa, nem nunca foi, era mentira aquela beleza esperta. A coisa é uma máquina envenenada, esse Dodge Charger que deitava o banco todo pra namorar no descampado com o tapa gostoso que dói. Nada disso. Agora amétrica a rima descura um outro tempo contrapondo, e sem lendas ou lembrares faz destino conta gotas até a esquina próxima, onde é preciso entrar à direita.

Pic pic,.. das primeiras gotas, o sortilégio das lágrimas exteriores. Cláudio Lúcio lembrando dos tempos do Charger, fodedor. Agora sim, dentro desse carro mil com ar condicionado indo fundo ao abismo da placa, desde o túnel em que Roberto Carlos passou de helicóptero foi preciso o nascimento que mostrou a miragem do mar por instantes, ocorrendo esse para não ser atropelado pelo fluxo de competidores desesperados deixando pairar atrás de si um rabo dançante de outros.

O primeiro dia no emprego foi uma navalha na carne de segunda. E de lá pra cá foi pra te farejar que disseram cuidado com a cuca que a cuca te pega. Cássia Eller cantando no cd de painel, o 3º da série robauto. Quem é bom? “Bom mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?” Nascer de novo é todo dia, mas pessoas inteligentes geralmente querem acreditar na matemática. A placa da Toneleiros avisando que o arco íris verde e múltiplo vai abrir depois que ele descer ao metrô de Copacabana e subir noutro lugar, atravessar a cidade como um tiro. Estacionar o carro antes.

“Je est une autre”. Escapa a exceção de ruídos compondo uma música cretina, despedaçada. É quase sem adjetivo essa manhã de Cláudio Lúcio tentando entrar na Toneleiros, sentindo a barata de Gregor Samsa achatada no entrelivros que a vida passou a ferro. Sentindo a carne de Laura de balance ao trocar o cd, enfiando um Van Halen no painel do Clio, histórico nos meandros urbanos; era sinal fechado e dava tempo de mexer ali.., ele ainda jovem jogava o cabelo para trás do tempo, acelerava parado experimentando o motor teso. Quando abriu o sinal miserável, um pulo de gato jogou contra o táxi ao lado direito até entrar todo na Toneleiros rasgando até o posto de gasolina, onde Ed Van Halen destruía lembranças. O frentista perguntou se podia completar. Cláudio Lúcio lembrou da transa com Laura, numa madrugada vestida de frio, alguns quarteirões à frente dali. É sempre possível esquecer Laura; gosto, pelos, mas não o olor. Cláudio Lúcio nunca soube identificar se do cabelo, pele ou do ar que a circundava.

Charger, vendido ao ferro entrou velho de ferrugem lá por Belfort Roxo e nunca mais. Aqueles bancos, seu horizonte que alicerçaria a fantasia nos filmes mostrando o Alto da Tijuca. Tchau carros da Sousa Ramos; tchau coleção completa da 4 Rodas; tchau-tchau pornochanchada loura. Os poemas novos a cidade mostra nos Outdoors que drogam ambições, misturam fazendo vitamina sem álcool politicamente correta.
Imaginando onde estacionar o carro para vencer o centro de metrô, também deslindava um destino para aquela noite, perdida de suas vidas desde que se apaixonaram pela terceira vez. A estação Arcoverde olhava esses delírios com devoção e crueldade, ali perto do lendário 200 fazia sonetos ruídos de vícios e travestis dormindo. Cláudio Lúcio tentava apenas imaginar, lembrava perfeitamente. Saíam pela cidade, andarilhos pela inexistência que anoitecia, quando entravam nas casas noturnas a procurar por outros amores sutis e falsos, despiam de si a bondade para entregarem-se um ao outro frente a outros que mentiam também e os ensinavam. Assinando o cheque à janela do carro, como apoiara nas mesas de casas-Copacabana(s), às portas das 4 da night, levando à sua um casal de pombos a empalhar manhã e cama de sono com gemidos e migalhas de comida da matinal geladeira Brastemp. Corpo prateado sem lua. O corpo de Laura desvanecera pelos anos que se passaram; retornava do sublimado ao real inanimado que campeia as manhãs executivas.

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